Reinvenção da educação ou desinvenção?| Artigo

Por Juliana Dias

“[…] por que retomar agora o ensino  presencial em um momento em que o DF registra seus picos da pandemia e da ocupação hospitalar em UTI? O sistema virtual de ensino-aprendizagem não está funcionando? Há algum tipo de pressão em alguma instância não esclarecida sobre a retomada? Há grupos de famílias solicitando o retorno?”

As questões que levanto são algumas inquietações como mãe, também permeadas pela minha identidade docente formadora o que não pode ser apartado neste momento, já que estamos tratando do tema educação. Especificamente sobre o formato híbrido de retorno das aulas, me pergunto se as escolas têm considerado as visões das famílias neste momento tão delicado e único como o que estamos atravessando antes de discutirem a possibilidade de retomada das aulas presenciais. Quais são as estratégias de diálogo que as escolas vêm tecendo com suas comunidades escolares a fim de construir o novo contexto pedagógico com base na escuta sensível dessas famílias, considerando como cada qual está sentindo esse retorno, quais são as angústias imaginárias que giram em torno da volta às aulas e quais são as realidades de cada núcleo familiar? Haverá momento de esclarecimento quando tudo já estiver decidido ou as comunidades poderão participar ativamente dessa discussão, mesmo que seja, é claro, cada um de seu lugar? Os/as professores/as também estão sendo ouvidos?

Talvez a pergunta mais importante que quero trazer aqui é: por que retomar agora o ensino  presencial em um momento em que o DF registra seus picos da pandemia e da ocupação hospitalar em UTI? O sistema virtual de ensino-aprendizagem não está funcionando? Há algum tipo de pressão em alguma instância não esclarecida sobre a retomada? Há grupos de famílias solicitando o retorno? Porque se há, nesse caso, a escola estaria não apenas ouvindo esses apelos, como também deixando de ouvir os grupos que são contrários ao retorno. Aqui gera-se uma disparidade inicial, que corre o risco de resvalar para injustiça, não é mesmo?

Uma vez que a retomada seja realizada no modelo híbrido, em que os professores darão aulas presenciais em regime controlado de distanciamento escolar e em que as aulas serão transmitidas online para as famílias que decidirem por se manterem em casa, eu pergunto: e os processos do âmbito pedagógico, como serão conduzidos? Fico pensando no/a professor/a como um profissional que passará por mais um tipo de achatamento de sua autonomia. O modelo de trabalho educacional veio, ao longo dos últimos meses, se aprimorando, tanto do ponto de vista do hábito mesmo, como no que concerne a movimentações didáticas novas, as quais vinham fazendo parte do sistema remoto. O/a docente já estava se acostumando e já vinha ousando se aventurar com metodologias mais ativas, como breves exercícios próprios do ensino a distância, utilização de vídeos mais interacionais e leves, uso de apoio de plataformas de ensino para enriquecerem o processo de troca etc.

Neste contexto de reinvenção do processo pedagógico, as escolas resolvem pela retomada híbrida, o que, possivelmente, vai exigir do/a professor/a novos desafios. Minha torcida é para que agora não seja uma desinvenção pedagógica no bojo do retrocesso para uma educação bancária, com uma repleção de aulas expositivas, a retomada do sistema ‘cuspe e giz’ de antigamente. Pedagogicamente não vai bem para nenhuma das partes mais interessadas na sobrevivência da educação neste ano de provação: não vai bem para os/as estudantes que estarão ali em suas carteiras, imobilizados pelas circunstâncias, rodeados de ‘não pode’, atentos para não serem filmados ou contaminados, paralisados diante de um/a professor/a que, por sua vez, estará dividido entre os/as alunos/as em casa (por trás da câmera) e os/as alunos/as ali bem na sua frente. Não vai bem para os/as estudantes que permanecem em casa, uma vez que correm seriamente o risco do abandono pedagógico. Que dirá os/as coordenadores/as atendendo inúmeras demandas de tão diferentes especificidades, imbuídos em garantir uma qualidade de ensino que simplesmente não pode ser atestada em função de falta de base. O problema estará na confusão pedagógica gerada que contaminará todos os meandros do processo. Com a raiz instável, não se tem estrutura nova. Não vai bem para nenhum dos sujeitos ligados ao processo de ensino-aprendizagem. Então eu pergunto: a volta às aulas neste momento vai bem pra quem?

E como superar o excesso de aulas expositivas, metodologia mais do que comprovada em sua ineficiência pedagógica. O/a docente não vai poder usar uma dinâmica de aula, pois os de casa não vão poder participar; não vai também poder usar uma dinâmica virtual, porque os da sala ficarão de fora. Ou, vai ter de lançar mão das duas dinâmicas, o que, ao final de um mês, terá gerado tanto desgaste que o único e inevitável caminho será o retorno das aulas expositivas. Para quem mesmo que esse processo traz benefícios? Para os/as estudantes, professores/as e coordenadores/as não é. Então para quem é?

O maior risco, na minha visão, é o embotamento (mais uma vez) do processo de troca; o eros pedagógico ficará seriamente comprometido, pois a tensão tomará conta de uma vez por todas do ambiente educacional. Será que já não basta o tempo que estamos atravessando buscando, cada qual em seu caminho, meios para não fenecer a esperança. Será que não é tempo de ampliarmos a visão e aproveitarmos para vivenciar o desafio com diálogo, com escuta, com um pouco mais de empatia? Se já estávamos antes da pandemia procurando novas formas de lidar com alguns ‘inimigos’ do lado de dentro da escola, como a ansiedade, a depressão, o estresse em torno dos ritmos frenéticos da nossa existência contemporânea, não deveríamos estar agora, ainda, processando devagar este estado de emergência que estamos passando? O estado de calamidade que interessa não é apenas o que se passa do lado de fora da nossa casa, ou pelo exterior das nossas máscaras de tecido. A devastação que mais interessa olhar é que vai por dentro de todos nós, é o luto mal vivido desses tempos diante de tantas mortes que cada vez mais batem à nossa porta. Além do luto real, é o luto interior pelo ano que está passando e não vimos amigos, não respiramos ares que nos desintoxicam de nós mesmos, muitas vezes presos em máscaras muito mais antigas e encardidas do que essas que temos usado na pele.

Acredito que devemos pensar em discutir com mais verdade, com mais honestidade sobre o que está acontecendo por detrás dessa pressa quase silenciosa sobre a volta às aulas.

Vai bem pra quem?

Juliana Dias, mãe de três filhos em idade escolar e professora pesquisadora, coordenadora do GECRIA (UnB/CNPq)- www.autoriacriativa.com

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