Não somos proprietários de nenhum conhecimento, e somos coproprietários de todos. Herdamos vários conhecimentos de outros e temos o dever de repassá-los aos próximos.
Olá, companheiros!
Hoje voltarei com minhas metáforas um tanto quanto curiosas. Estou na terra do Linux. Não sei se todos conhecem, ele é um sistema operacional, como o Windows. Talvez, seja mais conhecido entre os desenvolvedores de software. Ele foi criado por um finlandês, Linus Torvalds e representa muito bem o espírito que encontro várias vezes aqui na Finlândia. Conhecido, dentre várias outras coisas, por ser um software livre, pode executar, copiar, distribuir, estudar e até alterar o código do sistema livremente.
O software livre não tem proprietário, não tem um dono. Na verdade tem: todos são donos. O fato de ser um software livre oferece essa vantagem: todos os desenvolvedores se tornam colaboradores, para construir, corrigir, fazer evoluir o software. Existem vários que são construídos e mantidos assim, por uma rede de colaboração de programadores que interagem por meio de alguma plataforma (sistema de controle de versão, gestão de mudanças, etc).
O software proprietário possui acesso restrito tanto para construção, conhecimento do funcionamento e também para a utilização. O Windows e os produtos Microsoft são um exemplo disso. Tudo é mantido apenas pela Microsoft e o acesso é restrito. Para se adquirir é preciso pagar. Não é possível copiar, nem conhecer o funcionamento interno; é como uma caixa-preta. Aparentemente o controle aumenta, o poder está centralizado; mas isso também traz alguns problemas.
Alguns podem pensar: “Um sistema operacional sem dono? Construído por todos? Deve estar cheio de falhas!”, e falham ao pensar assim… Os softwares livres são geralmente considerados mais confiáveis do que os softwares proprietários. O Linux é muito usado em servidores de grandes sites devido à sua confiança. E é considerado muito mais seguro do que o Windows, além de ser muito mais estável. É aparentemente paradoxal. Como pode ser seguro algo que é aberto, acessado por todos? Como algo que está exposto e que não conhece muros ou cercas, torna-se mais seguro e difícil de atacar que um sistema fechado, escondido, desconhecido como o Windows.
Todo o segredo da segurança e estabilidade está na colaboração. Existe uma rede de programadores atuando continuamente para acharem os possíveis erros do sistema, cada um com sua perspectiva e visão. Isso é uma rede de segurança. Enquanto isso, no Windows, toda a responsabilidade fica centralizada. O poder se perde justamente por estar centralizado. Resultado: vírus, instabilidade, telas azuis, etc.
O software livre se tornou mais do que uma simples licença de uso, virou o ícone de uma filosofia de trabalho, uma ode à colaboração. É uma tendência crescente que acompanha a descentralização do poder, em vários níveis. Esse é o futuro, desde a geração de energia à criação de produtos, ou até a construção de conhecimento, como ocorre com o Wikipedia (sobre isso, recomendo o livro A Terceira Revolução Industrial).
Mas com relação à educação pública no Brasil, por que ainda não existe esse espírito? Por que não nos abrimos para construir colaborativamente o conhecimento na sala de aula? Por que nós, professores, não colaboramos uns com os outros na construção dos cursos e nas ofertas de disciplinas? Por que não aprofundar o exercício de uma docência colaborativa? Não é tão mais produtivo quando construímos materiais colaborativamente? Por que não ensinar colaborativamente? Por que tratamos o nosso conhecimento, pesquisa, projetos, disciplinas como uma propriedade?
Muitas vezes, na sala de aula, o professor se apresenta como o grande proprietário do conhecimento. O aluno é um pobre desvalido de saberes, perde seu “poder”, sua liberdade de atuação. Um passo importante para a mudança desse cenário é tornar o “conhecimento aberto”, tornar todos proprietários, todos donos. Conhecimento não é a posse do saber por um indivíduo; é o partilhar de um sistema de significação por uma comunidade.
Não somos proprietários de nenhum conhecimento, e somos coproprietários de todos. Herdamos vários conhecimentos de outros e temos o dever de repassá-los aos próximos. Não só recebemos saberes de nossa família, de nossos amigos e de nossos professores diretos, mas de toda a humanidade. Não tivemos que descobrir a roda, nem o fogo. A construção dos saberes é coletiva e vem sendo feita assim há milênios. Por que então segurá-lo com a gente?

O modelo atual está longe de refletir as mudanças sociais que vemos se espalhando. É centralizador e pouco colaborativo, e em nada se assemelha às maneiras livres e colaborativas de produção e trabalho crescentes. Derrubar muros, estreitar laços, provavelmente não será algo que, na cultura brasileira, se poderá fazer de uma hora para outra, mesmo assim, temos de começar. A cultura, felizmente, se movimenta, e muda, se a gente se movimentar, e mudar.
Tornando a educação aberta, a participação de alunos e a colaboração entre professores serão estimuladas. A comunidade poderá participar também, de modo ativo. Empresas, organizações, governo e a sociedade como um todo possuem competências que podem ser compartilhadas na academia. A sociedade tem demandas a serem solucionadas, a comunidade pode sugerir conteúdos, competências, conhecimentos necessários para resolverem problemas reais. Podem inclusive participar desse processo, colaborar em projetos junto com alunos, facilitando interação entre academia e comunidade, podem atuar em conjunto no feedback para o aluno, avaliando os resultados, ajudando inclusive no aprimoramento dos resultados. Educação colaborativa, de responsabilidade de todos.
Para isso precisamos de abertura. Não podemos nos fechar em nosso mundo! Todos podem contribuir com a educação. A sociedade tem interesse nisso, ela deve ser o nosso demandante!
A força está em todos! Até a próxima, pessoal!
Os textos da série “Bacalhau na geladeira” refletem a visão em primeira pessoa do Professor Rodrigo Calhau que esteve na Finlândia participando de um programa de especialização em práticas pedagógicas inovadoras na HAMK University of Applied Sciences em Hameenlina, cidade localizada a aproximadamente 100 km ao norte da capital Helsink e foram escritos entre Fevereiro e Julho de 2015. O nome da série “Bacalhau na Geladeira” corresponde a uma brincadeira com o sobrenome do autor e o clima frio do inverno finlandês.
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