EaD não é depósito de conhecimento | Artigo

Por Gina Vieira Ponte
Revisão de Vagner Lúcio de Lima

O coronavírus obrigou professores e professoras, escolas, estudantes e seus familiares a colocarem as palavras EaD e Educação mediada por novas tecnologias na ordem do dia. Nunca se falou tanto do tema. E, por isso mesmo, talvez nunca tenha havido tantos equívocos quanto ao que seja educação a distância.

 As expressões que temos ouvido recorrentemente são: “estamos em um momento histórico”, “é hora de dar respostas que apoiem a educação”. As respostas estão vindo, de forma frenética, de escolas, educadores, secretários de educação, empreendedores em educação.

Mas tem me incomodado muito que falte clareza na definição de que tipo de EaD está se falando. Sou especialista em EaD pela Universidade de Brasília, e o que tenho visto ser adotado por muitas escolas está passando ao largo do que seja a Educação a Distância, que se trata de uma modalidade com características específicas, que demanda um trabalho integrado de vários profissionais. Ela não se resume à entrega de conteúdo ou a depósito de atividades. A EaD com a qual me filio luta o tempo todo para transcender a lógica da “educação bancária”, sobre a qual Paulo Freire fala, para constituir-se como uma proposta em que a autoria, o protagonismo dos estudantes seja valorizado e potencializado.   No contexto da EaD, trabalhamos com fóruns, chats, produção autoral, rodas de conversas virtuais, debates, tudo que promova engajamento e abra espaço genuíno para a expressão dos estudantes.

Preocupados em aderir rapidamente à EAD e embalados pelas máximas “temos que salvar o ano letivo” e “a aprendizagem não pode parar”, vemos as pessoas ignorarem preceitos básicos, como a necessidade de diálogo, de construção coletiva, de ouvir como o outro está, antes de tomar decisões. Sei que há uma pressão por respostas rápidas, por apresentar soluções imediatas. Mas essa é uma situação nova para todo mundo, e admitir isso não torna ninguém incompetente. Soluções construídas coletivamente podem demorar um pouco, porém, são mais efetivas do que aquelas que se dão pela imposição. O processo coletivo de construção de soluções já é uma experiência profunda de aprendizado para todos.

Image by Tumisu from Pixabay

No contexto da educação, precisamos começar a repetir outra máxima: “estado de emergência não pode ser transformado em estado de exceção”. O caos não pode nos autorizar a ignorar como o outro está se sentindo. Se formos por esse caminho, a crise não nos terá ensinado nada.

Quando as pessoas repetem “Temos que salvar o ano letivo”, eu me pergunto: O que significa salvar o ano letivo? Entupir os estudantes de tarefas, muitas de baixa qualidade, e sem intencionalidade pedagógica, para que nos sintamos com o dever cumprido? Sobrecarregar as professoras e as mães, que já são quem paga um preço altíssimo com a tripla jornada, e que agora ficarão ainda mais sobrecarregadas?  Quando dizem “A aprendizagem não pode parar”, eu penso “Que arrogância da escola de achar que a única aprendizagem que se dá é dos saberes escolares!” A aprendizagem nunca para. Sempre estamos aprendendo. As crianças, os adolescentes, as famílias, nesse momento, estão em aprendizado, sobre como viver juntos um tempo maior, como se apoiar mutuamente em tempos de crise, como lidar com uma nova realidade, como  enfrentar o medo, como administrar essa nova vida e as incertezas que ela trouxe a todos nós. Tudo isso é aprendizado.

Quando eu vejo esses discursos salvacionistas da sociedade em favor da escola, lembro do querido Miguel Arroyo que diz:

“[…] a sociedade nos pensa como nossos salvadores (nós, estudantes, professores e professoras) porque os educandos e suas comunidades são pensados como atolados em negatividades históricas” (ARROYO, 2019).

Vejo todo mundo batendo palmas para as novas tecnologias que vão chegar com mais força às escolas, mas, se as nossas concepções não mudarem, elas continuarão a serviço de práticas pedagógicas equivocadas, ultrapassadas, obsoletas, que pouco colaboram para a aprendizagem. Sabe aquela história do professor que mandava fazer cópia do quadro? Com a inovação tecnológica, passou a mandar fazer cópia de slides. As concepções dele não mudaram e as tecnologias só foram colocadas a serviços delas.

As tecnologias sem a base dos valores plurais, sem compromisso com os marcos civilizatórios, sem intencionalidade pedagógica, podem nos levar à barbárie. Basta lembrar que tiveram um papel decisivo na eleição do atual presidente. Os robôs e fake news foram recursos tecnológicos usados para projetar as vozes dos que se identificavam com o discurso beligerante e fundamentalista dele e fizeram com o autoritarismo chegasse ao poder.

Não estou dizendo que as escolas não possam fazer nada a partir das tecnologias que nos permitem o trabalho a distância. O que me preocupa é estarem chamando de EaD uma mera entrega de tarefas, que não difere muito do que já era proposto em sala de aula. Estou tendo acesso a materiais didáticos produzidos neste contexto, e o que vejo são os alunos recebendo atividades para cumprirem em casa, como se estivessem com o livro didático na tela do computador. Em outros casos, os estudantes deixam de fazer cópias das lousas e passam a fazer cópia do celular. Isso não é EaD, não a comprometida com as aprendizagens significativas e a formação para a cidadania.

Também me preocupa que tudo isso esteja sendo feito como se os estudantes, nesse momento, pudessem estar entregues ao aprendizado estrito dos saberes escolares. Não é uma situação corriqueira. Esse estudante está sendo demandado a lidar com situações novas, a ajudar a família. É preciso que, ao se enviarem as tarefas, pense na dosagem, pois o que está sendo proposto nunca pode virar um fardo para o estudante ou para a família.

Em relação às escolas, algumas redes já estão tendo que lidar com a resistência das famílias, dos professores e das professoras que não foram ouvidos, não se sentiram parte das deliberações e, agora, estão com dificuldades para cumprir um plano que foi pensado para elas,  no qual elas não se reconhecem, porque não ajudaram a construir, e, portanto, não agrega valor às suas especificidades e necessidades.

Em qualquer contexto, mesmo de extrema urgência, penso como Moacir Gadotti, que diz:

“Educar é conscientizar, desalienar. Nosso poder não é o poder dos poderosos, mas o poder da razão, da crítica radical, do engajamento, da sensibilidade, da compaixão, da solidariedade” (GADOTTI, 2003, p.11)

Espero que, de verdade, depois de tudo isso passar, tenhamos entendido que a educação de que precisamos não é uma educação que, como diz Paulo Freire, compreenda o processo de aprendizagem como uma entrega de conteúdos a serem armazenados. Retomo aqui um trecho precioso de Pedagogia do Oprimido, que nos ajuda a pensar com mais profundidade sobre isso:

Desta maneira, a educação se torna um ato de depositar, em que os educandos são os depositários e o educador o depositante. Em lugar de comunicar-se, o educador faz ‘comunicados’ e depósitos que os educandos, meras incidências, recebem pacientemente, memorizam e repetem. Eis aí a concepção ‘bancária’ da educação, em que a única margem de ação que se oferece aos educadores é a de receberem os depósitos, guardá-los e arquivá-los. Margem para serem colecionadores das coisas que arquivam. No fundo, porém, os grandes arquivadores são os homens, nesta (na melhor das hipóteses) equivocada concepção ‘bancária’ da educação. Arquivados, porque, fora da busca, fora da práxis, os homens não podem ser. Educador e educandos se arquivam na medida em que, nesta distorcida visão da educação, não há criatividade, não há transformação, não há saber. Só existe saber na invenção, na reinvenção, na busca inquieta, impaciente, permanente, que os homens fazem do mundo, com o mundo e com os outros. Busca esperançosa também. (FREIRE, 2019, p.80)

Que nesse momento, mais do que orientar professores e professoras a depositarem conteúdos, as nossas redes sejam capazes de orientá-los a fortalecer os vínculos com os estudantes e com as famílias, que os nossos professores sejam a voz que levará conforto, orientação de qualidade e encorajamento às crianças. Que cada um de nós mostre o poder da educação para nos unir, para construir consensos pelo diálogo. Não há nenhum aparelho do estado que esteja tão próximo das famílias como as escolas.

 Agora é um momento crucial para que elas sinalizem que estamos aqui, abertos para a construção coletiva, desejosos de ouvir e oferecer escuta qualificada. Tudo isso é aprendizagem, tudo isso é educação. Valores como empatia, solidariedade, colaboração, senso de coletividade não são aprendidos com aulas teóricas, mas, sim, pela vivência. Essa é uma oportunidade preciosa para que essas vivências possam ser proporcionadas.

A escola tem como papel central a tarefa pedagógica de garantir que todos aprendam e se desenvolvam da maneira mais plena possível, porém, como preconiza a Constituição Federal, tem uma função social que não pode ser esquecida. E pensando nisso, a  EaD não pode ser mais uma ferramenta de produção de desigualdade social. É fundamental garantir que todos sejam atendidos em suas especificidades e que as oportunidades sejam proporcionadas de forma justa a todos.

Acho absolutamente louvável o que todos estão tentando fazer nesse momento de crise, em que estamos ávidos por ajudar, por dar respostas, por propor soluções. Têm surgido  ideias incríveis, inspiradoras, iniciativas maravilhosas.

Mas, no contexto da educação, é importante estar muito atento, recebendo os feedbacks das famílias e dos estudantes. Quem vai avaliar se o que estamos fazendo é efetivo, está ajudando, surte o efeito desejado por nós, são eles. É necessário estarmos abertos à possibilidade e à necessidade de fazer ajustes, de mudar o Plano Estratégico pensado para a crise.

Ontem me deparei com um artigo incrível de uma pesquisadora de Stanford, Denise Pope. Nesse momento de crise, tenho lido muitas coisas, tenho assistido a muitas lives, tenho ouvido muita gente, mas ainda não tinha ouvido ou lido algo similar ao que ela propôs e que dialogasse tanto com o que penso. Entre várias informações importantes, no artigo, ela diz:

“Minha esperança é de que possamos usar esse tempo para deixar as crianças empolgadas em aprender coisas que não podem fazer enquanto estão na escola, em vez de fazê-las preencher planilha após planilha (…) A aprendizagem baseada em projetos é uma boa maneira de incentivar um mergulho profundo em algo que os alunos realmente estão entusiasmados(…) Este é um bom momento para tempo de brincadeira, de inatividade, que inclui sono, que são fatores críticos para o bem estar”. 

Há muitos caminhos para estimular que  essa fase crítica se transforme em um momento em que a aprendizagem dos saberes escolares continue e o ano letivo não sofra tantos prejuízos. Mais do que querer transpor a sala de aula para a casa das crianças e dos adolescentes, o nosso desafio é justamente estimular os professores e professoras a pensarem em metodologias que transcendam a entrega de conteúdos. Temos estudos conclusivos que apontam que a aprendizagem mais significativa se dá pela mobilização dos afetos, pela emoção, pela interação. As crianças e os adolescentes aprendem quando se sentem parte, quando podem erguer as suas vozes, quando têm experiências pedagógicas em que falam, leem, ouvem, refletem, discutem, constroem, pesquisam, questionam.

Outro dia, dentro dessa crise toda, lembrei de como a Escola e a Pedagogia Waldorf surgiram. Quem conhece a iniciativa sabe que se trata de uma proposta profundamente humanizada, que respeita as especificidades de cada fase do desenvolvimento humano e que valoriza muito a autoria, a voz das crianças e coloca como prioridade a qualidade da relação dos estudantes com os seus mestres e a aprendizagem pela experiência.

A Escola Waldorf surgiu depois da Primeira Guerra Mundial, por volta de 1919, quando o mundo estava devastado, destroçado e sem esperanças para o futuro. Rudofl Staneir, o idealizador da proposta, que à época era proprietário de uma fábrica de cigarros, sugeriu que os trabalhadores da fábrica deveriam conhecer melhor o propósito de seu trabalho específico e, dessa maneira, conseguir uma relação mais humana com ele. Esses trabalhadores passaram a ouvir palestras sobre temas sociais e educativos. Como consequência, surgiu entre  eles, o desejo de que seus filhos recebessem uma educação escolar mais adequada às reais necessidades do desenvolvimento humano, na nova conjuntura social que se anunciava. 

Esses pais e mães, então,  passaram a desejar que seus filhos e filhas também recebessem uma educação que desse conta de aspectos ligados aos valores cidadãos, pois queriam que fosse criada uma escola a partir da qual, as crianças e os adolescentes pudessem aprender a ter esperança, sonhar com dias melhores, resgatar a beleza da vida.

Esse é o meu sonho. Que atravessemos a crise não repetindo mais do mesmo, mas pensando exatamente em como, depois dela, poderemos ter uma escola mais humana, mais bonita, onde todas as vozes e existências realmente importem. Para a aprendizagem acontecer, para o ano letivo fazer sentido, a educação precisa resgatar o que é essencial: escuta, trabalho coletivo, diálogo, direito ao contraditório. E não é a mera entrega de conteúdos que vai dar conta disso. Já usamos as tecnologias para entregar conteúdo há muito tempo, desde o livro didático, que também é uma tecnologia. Talvez, seria a hora de pensar em como colocar a tecnologia a serviço de algo maior do que isso.

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